20.6.12

Muro


Imagem: desconhecido
Poesia: Danízio Dornelles

(a duas meninas que se beijam, amparadas
numa muralha de cimento frio)

Que a tempestade, afinal
dos olhares que se fundem
alquimize o mundo
em pedra, vento,
mar e sal.

Que a nudez do espírito
evoque nas calçadas
o direito de seguir
(feito brasa)
o desejo de avançar
(feito rio)
o sentido de viver
(como asa)
o pecado de amar
(em desvario)...

Sejamos tal,
por infinito momento,
a luz do afeto,
que rega o cimento
afago sem cura
(que não separa, ampara).

Dois corpos jovens
fecundando a noite
de estrelas claras,
de sonhos puros,
escrevendo paz
na solidez dos muros.

19.6.12

A Noiva

Imagem: desconhecido
Poesia: Danízio Dornelles

Afastem a noiva do meio da estrada,
Que eu quero, calado, passar e passar...

Afastem a noiva de vestido escuro,
Que a fé, o futuro, pretendo salvar...

Não quero seu beijo (buquê de espinhos),
Só quero, sozinho, poder caminhar.

Afastem a noiva que há tempos me espera,
Que nem toda a fera se pode amansar!

Afastem a noiva da treva escura,
Que chega, procura, e fica a chamar...

O enlace é eterno, ninguém mais separa,
E o tempo repara as feridas da vida.

Afastem a noiva, a noiva secreta,
Que fez-se de poeta e beijou Alfonsina!

Afastem a noiva calada e sombria,
Que o amor inicia o que à noite termina...

Dança


Imagem: Hospital-Colônia de Oliveira (Arquivo Público Mineiro)
Poesia: Danízio Dornelles

Na madeira apodrecida,
Vidros quebrados;
A ferrugem cobre o aço...
Corpos dormentes
rasgam a noite em devaneios...
As agulhas, sem receio,
rompem a pele dos braços

Um homem segue vivendo
Porque alguém o esqueceu

A vagar nos corredores
A noiva – vestido negro
Busca pares para a dança

Mas entre alguns recusados
Fitando ao longe os eleitos
Figura estranho despeito
Pois já não há esperança

A noite é a hora do enlace
Quando suas aias – as doenças
Castigam as frágeis crenças
No sacrifício fatal

Se os corpos adormecerem
Na estática do vazio
Restará o ósculo frio
Brindando o ato final


18.6.12

A Noite Ser


Imagem: La Noche de los Pobres, de Diego Rivera
Poesia: Danízio Dornelles


É uma arte tão confusa
Ser noite além da tristeza,
Sorrir do íntimo pranto,
Buscando na dor, beleza...

Haverá vida e poesia
Na escuridão mais completa?
Nos cadáveres de pedra
Há muitas vozes de poetas!

É um mistério estar vivo,
E cantar o que se chora,
Beijar os lábios da morte,
Pedindo que vá embora!

E ver fantasmas da terra
Nas metáforas marcadas,
Cantando doces sonetos
Para as rosas mutiladas...

É um segredo incompreendido
Querer da flor, o espinho,
Ofertar o amor às trevas
Seguir a noite, sozinho...

Ser noite é viver de abismos,
Por entre sombras vazias,
Sangrando a extinta chama
Do olhar que lhe sorria!

É reencarnar o que está morto
Na cruz de alma singela,
E agonizar entre os vultos
Que espreitam além da janela.

Ser noite é mais do que o dia:
É ter sonho peregrino,
É brindar veias abertas,
À luz de um novo destino.

8.6.12

O Copo


Autor:
Imgem - desconhecido
Poesia - Danízio Dornelles

(a um poeta morto)

Inerte, cheio de vazio,
Feito a alma do poeta...
Que bebe a ausência secreta,
Do calor de quem partiu.

Em seus destinos iguais:
Um é amargo e sereno,
O outro bebe o veneno
Que conduz ao nunca mais...

A fonte, já sem valia,
Espelha o corpo profano;
Cortado pelos minuanos,
Sonha ver a luz do dia.

Quando emana o desamor
Nos deserdados da sorte,
Sorvem a essência da morte
Pensando beijar a flor.

Na madrugada silente
Acharam o cristal quebrado,
E flores amareladas
Velando a dor de um ausente!

Sob um canto já sem luz,
Sucumbe a mera existência
E no copo, a transparência
Reflete agora uma cruz.

Quem foi e quem seria,
O corpo ali tombado?
Talvez um homem calado,
Transbordante de poesia

Partiu a alma, liberta,
Restou o copo em pedaços,
E quatro luzes escassas,
Pra iluminar o poeta...

6.6.12

Nudez

Autor:
Imagem - Nu Azul (1902), de Pablo Picasso
Poesia - Danízio Dornelles
Insônia do frio,
repito teu nome
como sentença,
pecado e desvario

Insone,
que tua alma
me alimente

A mim,
monstro de metal,
flutuante,
fios de carvão
retorcidos,
face de papel,
náufrago caminhante

Interessam teus olhos,
tua voz no silêncio das coisas,
apego e desapego
nudez da palavra fria, crua,
diante do espelho da carne

Interessam os passos,
Teus passos
na contramão do tempo,
que não passa...
na tua estrada, incerta,
no meu caminho, sem volta.